Alex Lihue é um artista visual brasileiro nascido em 1985 na cidade de Aracaju (Brasil). Sua produção é baseada principalmente em pinturas digitais, quase sempre de autorretratos dotados de universos lúdicos e simbólicos que abordam, a partir de sua perspectiva, suas vivências como homem trans neste mundo.
Suas obras expressam o resultado de sua resiliência. “Sou aquela criança trans do passado que se tornou adulta e encontrou uma forma de dar voz a todas as crianças trans do presente e a todas aquelas que ainda nem nasceram!” Lihue é uma criança que sobreviveu e decidiu denunciar e combater as violências contra as infâncias trans através da sua arte.
Seus ‘personagens’ trazem características peculiares que são representadas através de vários símbolos e agora, cores que destacam aos nossos olhos. O artista mostra diferentes tipos de sentimentos e cria poesia sobre suas vivências, sem usar muitas palavras. Confira entrevista:
ALEX LIHUE E SEU UNIVERSO LÚDICO E SIMBÓLICO COMO HOMEM TRANS NESTE MUNDO – ENTREVISTA
FTC: Qual foi seu momento “a-ha”, seu estalo, para se interessar por arte?
Acho que nunca chegou a existir esse momento do “a-ha”. Pode parecer meio estranho, mas é a mais pura verdade! A arte nasce da necessidade do ser humano de se expressar e da sua capacidade de criação. Cresci rodeado de artistas e sempre me interessei pelas distintas formas de expressões artísticas. Esse foi um dos privilégios e é uma das partes boas da minha infância.
FTC: Suas obras, antes criadas apenas com preto e vermelho, agora ganharam cores. Há algum motivo para isso?
As obras em preto e vermelho nasceram num momento onde eu estava me sentindo sem lugar no mundo, elas brotaram da minha necessidade de expressar esse sentimento. Hoje continuo me sentindo da mesma forma, mas houve um momento em que finalmente pude ressignificar essa sensação e foi a partir daí que minha arte ganhou cores!
FTC: Também percebi que os personagens não possuem a orelha direita. Pode explicar?
Que bacana você ter percebido isso! Sou surdo unilateral, tenho perda total no ouvido direito desde que nasci. Só escuto com o ouvido esquerdo. Desenhar a orelha esquerda é minha forma de expressar que esse ouvido é importante pra mim, então não adiciono a orelha direita como forma de dar um lugar de exclusividade e importância pro meu querido ouvido esquerdo que me proporciona o privilégio de poder ouvir.
FTC: Existe um tema geral que você aborda? Quais suas inspirações?
Toda minha arte envolve minha existência e vivências como homem trans nesse mundo. Ou seja, todas as minhas experiências desde a infância. Sempre tento resgatar aquela criança do passado que agora é uma pessoa adulta no presente.
Em muitas obras, de forma lúdica e simbólica, faço uma crítica severa às diferentes formas de violência que nós pessoas trans costumamos vivenciar desde a infância e ao longo de nossas vidas.
Existem muitas coisas que me inspiram, isso engloba todas as minhas experiências e trocas com os mais diversos grupos e o olhar atento em torno de qualquer ambiente que eu esteja exposto no momento. Também existem outras inspirações, essas são algumas: a conexão com a natureza, os corpos dissidentes, a cultura mapuche (povos originários do sul da Argentina e do Chile), os filmes do Studio Ghibli etc.
FTC: Hoje, como classificaria seu trabalho?
Olha, tendo que classificar minha arte, acho que a chamaria de arte crítica e libertária.
Minha existência é política, assim como meu corpo também é político e minha arte não poderia fugir disso. Ela é o meu grito de resistência, um chamado ao combate à transfobia, onde busco denunciar todas as formas de opressão que as pessoas trans sofrem desde a infância. É um chamado para que as pessoas percebam que essa é uma forma de violência estrutural que deve ser erradicada. Através das minhas obras tento provocar uma mudança social, é um chamado para que a sociedade comece a abraçar as pessoas trans.
Através das minhas obras eu também tento resgatar tudo o que me faz sentir bem para nunca esquecer das coisas lindas. É como uma tentativa de trazer um pouco de leveza pra vida e me reenergizar para as minhas criações mais intensas. Entre uma obra muito intensa pra mim, sempre há um intervalo com alguma produção mais leve.
“Faço uma crítica severa às diferentes formas de violência que nós pessoas trans costumamos vivenciar desde a infância e ao longo de nossas vidas”.
FTC: Sua arte é feita de muitos simbolismos. Poderia falar, por exemplo, um pouco sobre a obra “Ainda aqui”?
A obra “Ainda aqui” é a terceira* da série “Eu sou trans”, uma crítica severa às diferentes formas de violência trans. A imagem da obra é um autorretrato onde estou sozinho, sem camisa, em um rio sob o sol. Meu cabelo é representado pela forma de um telhado, simbolizando que meu corpo é meu próprio lar. O galho e o peixe-voador simbolizam minha criatividade e conexão com a natureza.
O barco de papel afundando simboliza a violência vivida na infância pela censura muitas vezes imposta por outras pessoas em relação aos brinquedos que, em nossa sociedade cisheteronormativa, estão divididos por gênero, sendo o barco de papel um brinquedo designado como sendo exclusivamente para os homens cisgêneros. A imagem da casa minúscula representa o lar onde a pessoa já não pode mais entrar por não caber mais e faz uma dura crítica ao fato de que muitas pessoas trans são expulsas de seus lares.
O olho na casa simboliza o olhar de julgamento e controle familiar permanente, mesmo à distância. A fumaça que sai pela chaminé alude a um lugar acolhedor e à comida por ser servida. Mostra a hipocrisia de um lar acolhedor e de proteção que é seletivo e que cruelmente exclui um dos seus. A escada simboliza que o acesso ao lar é exclusivo apenas às pessoas que se encaixam naquele padrão e estrutura pré-estabelecidos pela sociedade cisheteronormativa. E a chave pendurada simboliza a impossibilidade de abertura e retorno ao lar.
FTC: Vi também que você está tatuando, como foi o início disso tudo?
Foi um lindo convite feito por uma artista que muito me inspira e que também é minha amiga e grande amor: Taíme Gouvêa! A Tai é uma das pessoas que mais me inspira, apoia e incentiva em relação a tudo.
Mas como foi isso do grande começo, não é mesmo? A Tai viu uma das minhas obras em preto e vermelho e falou: “Nossa, eu super tatuaria essa arte aqui! Amor, por que você não aprende a tatuar e tatua ela em mim? Haha! Eu acho que você super levaria jeito pra tattoo! Sério!”
Estou tendo o privilégio de começar com a Tai me ensinando e tendo toda a estrutura do nosso estúdio privado. A Tai começou a me ensinar a parte teórica e disponibilizou todo o seu material para que eu pudesse treinar em outras superfícies. Logo fiz minha primeira tattoo em mim mesmo e a Tai foi acompanhando e me dando algumas dicas! Resultado: me empolguei e de cara fiz duas tattoos em mim mesmo. No dia seguinte fiz vários desenhos pra divulgar meus primeiros flashs de tattoo e as pessoas amaram!
FTC: O que tem lido, ouvido, visto, quais são os artista preferidos no momento?
Vou começar a ler hoje o “Manual para o uso da linguagem neutra em Língua Portuguesa“ que foi desenvolvido por Gioni Caê de maneira informal e independente que, como Gioni mesme define, foi elaborado “a fim de auxiliar no uso da linguagem neutra em Língua Portuguesa”.
Acho muito importante estudar o uso da linguagem inclusiva e seria maravilhoso que todes buscássemos aprender e aplicar o uso da linguagem neutra, pois é uma forma de dar visibilidade e de respeitar pessoas não binárias!
Tenho ouvido muito: Mateus Aleluia, Josii Yakecan, Black Pumas, Chancha via circuito, Perota Chingó, Bife, Coiffeur.
Admiro o trabalho de muitos artistas, vou mencionar e linkar o instagram de alguns da nossa época: Auá Mendes, Ben Lopez, Cirulo, Iêda Carvalho, Isabella Conti, Jess Vieira, Larissa Vieira, Marie Muravski, Marija Tiurina, Monica Maria A, Paula Duró, Reno Nogaj, Taíme Gouvêa, Willian Santiago.
FTC: E agora, o que vem pela frente?
Estou trabalhando numa novela gráfica. O enredo já está escrito, agora estou na fase de produção das obras.
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