Seu estúdio secreto fica localizado em Brasília, mas Ana Abrahão caminhou muito para chegar até aqui. Hoje, a brasileira que tem um estilo autoral e único atende apenas com lista de espera. O sucesso de sua arte na pele e os desenhos delicados exclusivos, cheios de detalhes miúdos fantásticos e coloridos, são uma maneira de contar e ilustrar as histórias especiais de seus clientes. A artista acredita que a tatuagem não deve ser apenas algo bonito para se olhar, mas também para sentir.
Nascida em Brasília mas criada na Zona Rural da pequena cidade mineira de Paracatu, Ana morava em um posto de Gasolina, na beira da BR040 cercada de cerrado e histórias (palavras tão importantes para ela) que fizeram toda a diferença em sua trajetória. E ela nos contou tudo com muita disposição e simpatia.
“Aprendi a ouvir muito antes de falar, sou filha única e fui criada em meio a adultos. Sempre fui meio virada para dentro, sempre me encontrei em trabalhos manuais como o crochê, ponto cruz, adorava também as miçangas, acho que minha compulsão por miudezas e penduricalhos vieram da minha infância.”
Ana conta que seu quintal era uma mata nativa, já que o posto ficava em uma área de proteção ambiental onde tudo ao redor era o verde. Além do cerrado e dos trabalhos manuais que adorava, um de seus passatempos favoritos era simples: observar e ouvir o movimento da estrada, do posto, das pessoas que por ali passavam.
“As pessoas eram sempre muito diferentes, nunca iguais. As histórias as vezes até se pareciam, todos estavam ali de passagem e eu jamais poderia saber se veria eles novamente. A grande maioria eram caminhoneiros e suas famílias que usavam o posto para dormir, descansar, tomar banho e comer.”
” Minha mãe era sempre muito receptiva e disposta a ajudar, então andarilhos chegavam a passar dias e até meses com a gente no posto. Lembro de um em especial, ele era artista gringo, um escultor nato, entalhava madeira como ninguém; em troca de pouso e comida, nos agradecia com grandes e lindas peças, que eu ficava horas observando ele criar”.
Ela viveu assim até os seus 10 anos de idade quando teve um choque cultural muito grande, seus pais se separaram.
“A menina que mais parecia um bicho do cerrado foi morar na cidade grande, minha mãe preocupada com minha educação e meu futuro me colocou em um dos colégios mais elitistas de Brasília. Lá, tive dificuldades de fazer amizades. Para aquelas novas crianças eu vinha de um lugar onde tudo parecia muito distante e ultrapassado. Meus gostos eram opostos e eu nada conhecia sobre aquele mundo novo de gente rica. Em Paracatu, eu podia ir e vir, andar a cidade toda acompanhada apenas de uma amiga, em Brasília, eu mal tinha motivos para sair de casa.”
Com isso, ela ficou mais introspectiva, o que tornou sua ligação com a arte ainda mais forte. Em pouco tempo aprendeu a costurar. As histórias que ouvia já não eram as mesmas. Agora falavam sobre aviões, viagens, Disney, Paris e até Madagascar, enquanto suas férias continuavam sendo no mesmo endereço, o cerrado e Paracatu.
Com o tempo se adaptou a nova vida e fez infinitas amizades. “Meu ar continuou diferente e nem sempre aceito pelos outros, mas eu aceitei a minha história. No começo da adolescência aprendi a costurar e concomitantemente descobri um gosto especial pela música e pelas Artes Visuais. Passei as aulas do Fundamental ao Ensino Médio mergulhada em meus desenhos na carteira. Durante os intervalos, eram os amigos e os diversos instrumentos musicais que surgiam.”
Adolescente, não sabia se queria cursar Artes Visuais ou Música, mas acabou escolhendo as Artes. Com 17 anos, já dentro da Universidade, entrou para um projeto de Ópera onde fazia figurinos para os Solistas e Coristas.
Depois, descobriu na Xilogravura uma lembrança forte da infância. Gravar na madeira só perdeu um pouco a graça quando um dia a tatuagem do nada bateu de surpresa em sua porta – através de um grande amigo tão inquieto quanto ela, Bernardo.
Ela conta: “A tatuagem entrou na minha vida sem pedir nenhum tipo de licença e sem preparativos. Ela só surgiu. Em poucos meses tomou conta de todo o meu tempo; com ela eu não pude só ouvir, mas principalmente eu aprendi a contar histórias. Contar histórias de uma maneira mais que subjetiva, contar histórias através da imagem e da lembrança. A tatuagem me levou de volta a minha infância mais rica, me devolveu a liberdade pura que tinha quando era criança. Hoje o que mais gosto é de ouvir e contar essas histórias das pessoas que cruzam o meu caminho.”
Conversamos um pouco mais com Ana Abrahão para saber suas inspirações. Confira:
FTC: Como você define a sua arte?
AH: A arte para mim é um reflexo de tudo que já vi, ouvi e vivi. A arte é a experiência do artista, é sua maneira de olhar o mundo. E é bem difícil definir o que eu faço pois não faço sozinha, sou altamente influenciada pelas vivências e pelas pessoas que me procuram. Cada projeto é único, assim como cada história. Para mim, a tatuagem serve para conectar o seu universo ao universo de outra pessoa, tatuar é abraçar o outro e toda a sua trajetória.
Na maioria das vezes os temas podem se repetir, mas a maneira de olhar cada desenho é sempre diferente. A minha identidade visual é o que faz tudo parecer ter uma unidade, é o que me identifica como artista. A maioria dos elementos vem do que escuto todos os dias, dos meus clientes. Hoje a minha principal vertente é o traçado fino, a aquarela e o pontilhismo, mas isso tudo quase sempre aparece junto e misturado como uma técnica mista.
Meu trabalho vive e respira entre motivos de botânica e cerrado, penduricalhos, mandalas, arabescos e animais que lembram o imaginário infantil.
Meu público é formado 86% por mulheres, mas eu também adoro os projetos masculinos que me chegam sempre como promessa de desafio. Acredito que as características mais presentes em meus traços são delicadeza e subjetividade. Os homens são seres mais objetivos por natureza e é por isso que para mim eles são sempre desafiadores.
FTC: Com o que você se inspira?
AH: Eu me inspiro com tudo, acho que tudo tem a sua parcela de importância. Um desenho pode surgir de qualquer coisa, qualquer lugar e qualquer experiência. O que chamamos de criar dentro da arte é na verdade compor. O artista não cria, mas sim compõe, ele se apropria de vários elementos distintos, soltos e entregues ao mundo para gerar algo novo, muitas vezes em outro contexto.
É isso que me faz acreditar que a arte é o reflexo de tudo que o artista já viu, viveu e imaginou, ele só precisa conhecer ou ter contato com um elemento para se apropriar dele. Eu me inspiro basicamente em tudo que participa das histórias de cada pessoa e na minha própria.
FTC: Qual foi sua primeira tatuagem em um cliente?
AH: A primeira tatuagem que fiz foi em mim mesma, uma rosa dos ventos com o endereço BR040, Km14. Já a primeira cliente foi uma amiga, eu tatuei uma mandala que tinha criado para uma das matérias de desenho na Universidade. Algo que foi muito importante na minha entrada na tatuagem é que quando comecei, eu não conhecia nenhum tatuador e não sabia nada sobre esse universo. Tudo o que eu via nas ruas eu não gostava.
Meu interesse pelo assunto foi baseado na curiosidade e o que a ferramenta poderia oferecer aos meus desenhos. Nunca imaginei que pudesse realmente aprender a tatuar e que isso seria a minha profissão. Para mim era apenas uma experiência de colocar os meus desenhos em um novo suporte, a pele.
No começo, não ter tanta influência de fora, de um estúdio ou de um tatuador foi importante para conseguir começar a me descobrir sozinha e encontrar a minha própria estética.
Após 6 meses de aventura solitária eu finalmente tive ajuda. O acaso, o destino, me apresentou o querido tatuador Gustavo Carvalho, que me recebeu muito bem e que tentou me ensinar tudo que sabia sobre técnica e estúdio. Passei um ano trabalhando com o Gustavo e evolui muito, até que um dia decidi seguir novamente o meu caminho de filha única em meu próprio “esconderijo/estúdio”.
FTC: Está tocando algum projeto especial ou específico atualmente?
AH: No momento estou me dedicando a algumas viagens e eventos, mas no começo de 2016 eu idealizei e iniciei uma campanha de Doação de Sangue para ajudar o Hemocentro de Brasília a recuperar os estoques do banco de Sangue, a Campanha que Salva Vidas. A cada 10 doadores de sangue eu sorteei 1 tatuagem. Foram 88 doadores participantes em apenas 1 mês de campanha, 8 tatuagens foram sorteadas, mais 1 como premiação do concurso de fotos do momento de doação.
A campanha mobilizou muito mais pessoas do que eu poderia imaginar e foi feita sem nenhum patrocínio ou qualquer tipo de ligação direta com o Hemocentro. Uma única doação de sangue pode salvar até quatro vidas. A estimativa desse projeto é que ajudou a arrecadar aproximadamente 40 litros de sangue, que puderam salvar até 352 vidas.
FTC: Uma frase que você carrega para a vida.
AH: Faça tudo com amor e cuidado, seja lá o que for ou a quem for.
“A tatuagem serve para conectar o universo artístico do tatuador com o universo de quem o procura. Tatuar, para mim, é abraçar o outro. É importante também que a minha energia pareça com a sua, pois do contrário jamais conseguirei fazer algo que realmente importe para você.”
Acompanhe o trabalho de Ana Abrahão no Facebook e no Instagram. Contato por email: (contato@anaabrahao.com).