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‘O Grito’ e outras obras: No século 19, Edvard Munch já expressava as ansiedades do mundo moderno em suas pinturas

“Eu não pinto o que vejo, mas o que vi”. (Edvard Munch)

É fato: muitos dos artistas desenvolvem o seu estilo, estética ou temas altamente influenciados pelo que passam na vida, principalmente quando falamos no expressionismo, o movimento artístico que procura retratar as emoções, respostas subjetivas e acontecimentos que provocam o artista. Pressões ou problemas psicológicos, relacionamentos, família, os sentimentos humanos em geral – sempre foram traduzidos em grandes obras por nomes como Van Gogh, Lautrec, Paul Klee, Paul Cézanne e Edvard Munch, tema deste post.

Edvard Munch (1863-1944) foi um dos primeiros artistas do século XX que conseguiu conceder às cores um valor simbólico e subjetivo, longe das representações realistas. Nascido em Loten, Noruega, Munch iniciou sua formação na cidade de Oslo. Ele é considerado por muitos estudiosos um dos principais artistas a iniciar o expressionismo na Alemanha, país em que foi morar em 1907.

Retrato de Edvard Munch por Ukjent, C. (1889). Via: Wikimedia Commons.

Edvard Munch e sua psique moldada por doenças e traumas

Muitos conhecem Edvard Munch pelas suas obras, mas sua história pessoal é bem interessante e profunda. O artista sofreu vários traumas e teve uma vida familiar muito conturbada. Sua mãe e irmã mais velha (15 anos) morreram de tuberculose quando Munch ainda era criança. Uma outra irmã foi diagnosticada com problemas mentais e internada em um asilo psiquiátrico. Seu outro irmão morreu jovem. O pai de Munch tinha uma vida marcada pelo fanatismo religioso. Para complicar, Munch ficou muito doente durante toda a infância. Edvard usava a arte para se distrair e ocupar seu tempo em casa.

Já adolescente, começou a estudar engenharia. Mais tarde, seu pai religioso desaprovava sua decisão de deixar o estudo (aos 17 anos) para praticar a pintura e tentou desviar seu filho desse “comércio profano” até sua morte em 1889, o que deixou a família Munch empobrecida. Muitas análises do trabalho de Munch foram ditadas por essas histórias pessoais.

Perseguido pela tragédia familiar, Munch foi um artista determinado a criar obras que traziam “pessoas vivas, que respiram e sentem, sofrem e amam”. Ele recusou pintar o banal, as cenas pacíficas, comuns na sua época. A dor e o trágico permeavam seus quadros. Por conta disso, os seus sentimentos sobre doença e morte assumem um significado mais vasto, transformados em imagens que deixam transparecer a fragilidade e a transitoriedade da vida.

“No Leito da Morte” (Febre) (1893)

‘Morte no Quarto da Doente’ (1895)

A era de Freud e a psicanálise

Considerando que Munch era da mesma geração de Sigmund Freud e os primeiros rumores da psicanálise estavam surgindo, ele entendeu o poder da experiência subjetiva (crenças e valores de um indivíduo), da terapia e as forças irracionais da mente. Munch era de fato um indivíduo particularmente traumatizado, pelo menos em certas fases de sua vida. Mas ele também era um artista pensativo e intelectual que acreditava que precisava repensar drasticamente a natureza humana e enxergava além do seu tempo.

As cores no trabalho de Edvard Munch

Os primeiros trabalhos de Munch foram todos criados em tons mais claros e muito influenciados pelos impressionistas franceses das décadas de 1870 e 1880. Foi quando ele realizou uma viagem a Paris que conheceu Gauguin, Toulouse-Lautrec e Van Gogh. Munch então começou a se especializar em gravações e litografias, e em pouco tempo pôde se apresentar no Salão dos Independentes: seu estilo passava por grandes mudanças.

Embora ele tenha começado a usar tons mais escuros apenas na segunda metade da década de 1880, continuou pintando algumas paisagens brilhantes e retratos mais leves de familiares e amigos ao longo de sua carreira. Ele dizia que as cores mostravam seu estado de espírito e as recuperações após a terapia. As obras mais pesadas, as quais ele se tornaria conhecido, se desenvolveram em um momento difícil em sua vida.

Melancolia (1892)

Uma linguagem visual para a condição humana

Quando Munch começou a pintar em tons mais escuros como na obra ‘A Criança Doente’ (quadro abaixo) – uma série iniciada em 1885 – ele estava respondendo ao tumulto psíquico de crescer em uma casa acabada pela doença, mas também acabou expressando alguns aspectos do movimento simbolista (voltados para o interior do indivíduo), que tomaram a forma de uma espécie de romantismo perturbado no final do século XIX.

Como muitas das obras de Munch, ‘A Criança Doente’ é uma pintura sobre vários estados psicológicos. Se a criança doente (inspirada na própria irmã de Munch) transmite a inevitabilidade da morte, a cuidadora feminina sem rosto, assume o lugar de um espectador indefeso que reprime a ideia de mortalidade. O rosto beatifico, esgotado, da criança doente mostra uma aceitação de seu destino. Apesar de Munch pintar rostos sem feições e figuras distorcidas em seus quadros, essa era a sua maneira de mostrar a sua condição humana (e de todas as pessoas) através da arte.

‘A Criança Doente’ (1886) 

Outro famoso retrato é de uma menina ansiosa e nua sentada à beira de uma cama, em ‘Puberdade’ (1894-5), quadro que mostra seus próprios sentimentos de depressão sexual (e repressão) e o estágio psicológico precoce da puberdade em adolescentes. Freud depois publicaria três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, em 1905, incluindo uma das primeiras análises da sexualidade infantil.

Puberdade (1894)

‘O Grito’ e seus possíveis significados

Foi somente aos trinta anos que ele pintou sua peça máxima, sua obra mais conhecida, e uma das mais importantes da história do expressionismo. ‘O Grito’ (1893) é um exemplo dos temas que sensibilizaram os artistas ligados a essa tendência. Porém, há uma série de fatores que influenciaram Munch a pintar este quadro que retrata a angústia e o desespero e traz inúmeros outros significados segundo diferentes estudiosos.

O próprio Edvard Munch deixou um pequeno texto em que fala sobre a experiência que resultou em ‘O Grito’: “Passeava pela estrada com dois amigos, olhando o pôr-do-sol, quando o céu de repente se tornou vermelho como sangue. Parei, recostei-me na cerca, extremamente cansado – sobre o fiorde preto azulado e a cidade estendiam-se sangue e línguas de fogo. Meus amigos foram andando e eu fiquei, tremendo de medo – senti um grito infinito atravessando a paisagem”.

‘O Grito’ (1893), a obra mais famosa de Edvard Munch

Nela, a figura humana não apresenta suas linhas reais, mas contorce-se sob o efeito de suas emoções. As linhas sinuosas do céu e da água, e a linha diagonal da ponte, conduzem o olhar para a boca da figura que se abre num grito perturbador.

Segundo outras fontes, o quadro foi inspirado nas decepções do artista. É uma das peças da série ‘O Friso da Vida’ e foi feita em óleo, têmpera e pastel em cartão de pequenas dimensões: 91 x 73,5cm. Na ideia inicial de Munch, o quadro trazia apenas um homem de cartola, de costas, olhando para o céu. Só depois Munch decidiu inserir uma figura meio andrógina na cena, com uma expressão de desespero.

“O Desespero” (1882)

Em 2005, a historiadora da arte Sue Pridaux disse ter identificado a paisagem que inspirou Edvard Munch a pintar o seu quadro mais célebre. Segundo ela, o que se vê no fundo da tela seria as montanhas de Kristiania, a atual Oslo, observadas de Ekeberg, onde ficava o hospital psiquiátrico em que a irmã mais nova do artista, Laura, teria ficado internada sob o diagnóstico de esquizofrenia. Perto do local, havia também um matadouro. Segundo a historiadora, os gritos dos animais na hora da morte, combinados com o dos loucos do asilo, é o que teriam motivado Munch a pintar o quadro.

Outros especialistas supõem que a figura foi inspirada em uma múmia peruana que o pintor teria visto na exposição Universelle, em Paris, no final dos anos 1880. Ela foi enterrada em posição fetal, com as mãos ao lado do rosto. A mesma múmia também teria inspirado Paul Gauguin, artista e amigo de Munch, em duas de suas obras.

‘O Grito’ foi exposto pela primeira vez em 1903 integrando uma série de seis peças chamada Estudo para uma Série: Amor, em Berlim. A imagem da angústia e do desespero estampada no quadro encerrava a série. De acordo com Munch, o desespero seria “o resultado final do amor”, após sofrer uma grande decepção amorosa.

Munch fez quatro versões da pintura ‘O Grito’, para ir substituindo as originais conforme elas eram vendidas. Elas foram feitas entre 1893 e 1910. Muitas outras cópias foram criadas ao longo dos anos. Atualmente três das originais podem ser vistas na Galeria Nacional de Oslo (onde está a tela original, feita com a técnica de óleo e pastel sobre cartão) e no Museu Munch (com duas telas – “Ansiedade” e “O Desespero”), ambos na Noruega. A outra pertence a uma coleção particular. Em 2012, esta última tornou-se a pintura mais cara da história a ser arrematada, num leilão, por 119,9 milhões de dólares.

‘O Grito’ (no original Skrik) é uma série de quatro pinturas do artista norueguês, a mais célebre datada de 1893

Com a popularização da obra, ‘O Grito’ tornou-se ícone cultural no período pós-segunda guerra e um dos quadros mais reproduzidos do mundo, não só em pôsteres como também em canecas, canetas e porta-chaves, além de se tornar referência pop:

 

Munch e seus quadros roubados

Em agosto de 2004, dois dos mais valiosos quadros de Edvard Munch, “Madonna” e “O Grito”, foram roubados do Museu Munch, em Oslo. As duas telas, juntas, estão avaliadas em cerca de 98,6 milhões de dólares e foram localizadas dois anos depois, em agosto de 2006, em circunstâncias até hoje ainda não esclarecidas. O quadro “O Grito”, do qual existem cerca de quatro versões, apresentava algumas manchas de umidade, além de fendas e buracos na tela.

Cinzas (1925)

O final da vida e o legado de Edvard Munch

Aos 35 anos, Munch foi vitimado por uma crise nervosa, agravada pelo alcoolismo e por uma desilusão amorosa. Isso provocou sua internação em um clínica psiquiátrica na Dinamarca. As duas últimas décadas da vida de Munch foram em solidão em Oslo, onde ele pintou obras que assumiram um tom mais brilhante.

Alguns dizem que talvez ele tenha sido transformado pela terapia que recebeu para tratar sua ansiedade. Também procurava encontrar arquétipos psicológicos na tentativa humana de se definir através da mitologia.

Em seus últimos anos de vida, pintou uma série de auto-retratos, em que mostrava os efeitos do tempo sobre si próprio. Morreu em janeiro de 1944, sem conseguir assistir ao final da guerra e a derrota dos nazistas.

Autoretrato: ‘Entre o Relógio e a Cama’ (1940-43) 

Edvard Munch e o século 21

Como a crítica de arte do New York Times, Roberta Smith, declarou uma vez: “A arte de Munch oferece algumas das imagens mais eficazes do mundo sobre os estados emocionais – uma verdadeira linguagem dos sinais internacionais da alma”, ao observar seus personagens. 

As pinturas de Munch retratam os sentimentos mais profundos do artista e servem como expressão da nossa condição humanacomunicando até hoje o medo, angústia, tristeza, desespero e a ansiedade que cresce com força e continua tão atual quanto 124 anos atrás. Não sabemos se Munch viu além de sua própria história pessoal, seus traumas e doenças mentais, mas ele capturou de forma fantástica as manifestações psicológicas universais do ser humano.

‘O Grito’, por exemplo, continua atual por simplesmente ser um quadro humano. Terrivelmente humano. Humano no sentido em que nos toca, pois em algum momento das nossas vidas nos sentimos como o personagem.

Isso ajuda a explicar por que suas obras tem uma influência tão duradoura em tempos tão diferentes da época, mesmo a gente vivendo em uma era digital.

De que outra forma um trabalho tão pessoal nos conectaria com o período em que vivemos tão poderosamente?

“A Dança da Vida” (1925)

Fontes de pesquisa: Coleção Folha Grandes Pintores, Artsy, Obvious, Wikipedia, Saraiva

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