Conheça o fantástico Fiotim, um museu de arte contemporânea itinerante que viaja pelo Brasil aportando em áreas públicas
Um artista, um personagem, uma caravana, um museu. Não um museu qualquer, mas itinerante. Um museu de arte contemporânea que viaja pelo Brasil aportando em praças e áreas públicas. Criado pelo fantástico e criativo artista brasileiro Jorge Fonseca, o FIOTIM é uma Fábula-Instalação.
Nela, um camelô visita um importante museu em Minas Gerais – o Inhotim – e, ao presenciar encantado uma verdadeira romaria, descobre ali uma oportunidade de mudar de vida. A partir de então, esse ‘arteiro viajante’ se lança na missão de fazer miniaturas de tudo o que viu. Mesmo sem entender nada daquilo e dispor de poucos recursos, produz, à sua maneira, uma série de souvenirs – imitações toscas dos objetos de adoração.
A releitura e as principais referências utilizadas pelo artista na construção do projeto são os mascates (camelôs de outrora) e os ‘Gabinetes de Curiosidades’ (pequenos circos sobre rodas, que em tempos antigos percorriam cidades do interior, levando ao público uma exposição de raridades, novas descobertas, além de objetos considerados estranhos na época).
O trabalho inicial, que era pra ser uma simples barraca de camelô, foi crescendo e se transformou em um trailer, que abriga uma grande instalação (com ares de circo e parque de diversões, com direito a jardins, aves, paisagens, fontes e muito sonho), que o artista vem percorrendo ao longo de vinte anos de intensa produção. Nesse truck cheio de truques, Jorge percorre o Brasil, parando em lugares improváveis e gerando acontecimentos inusitados.
O FIOTIM tem como premissa a busca da aproximação e do contato intenso com o público. Por isso, Jorge também criou EVERLAND, um verdadeiro parque de diversões, composto por vários ‘objetos estéticos relacionais’, onde as pessoas interagem, se divertem e se relacionam numa verdadeira experiência artística.
Performances surpreendem e provocam o público. Jorge K, “O Rei dos Camelôs”, se apresenta contando suas proezas e traz ao público as maravilhosas invenções de artistas universais. Artistas moradores das localidades onde o FIOTIM se encontra também são convidados a mostrarem sua arte.
Para entender melhor como todo esse mundo mágico começou, conversamos com o maior personagem desse espetáculo, Jorge Fonseca. Confira sua entrevista exclusiva ao FTC:
FTC: Jorge, conte para a gente como surgiu o FIOTIM.
Sou artista autodidata. Iniciei minha carreira em 1995, aos 29 anos, quando participei de um Salão de Arte, em Campos/RJ. No ano seguinte, conquistei o 1°prêmio deste mesmo Salão e no Salão Paranaense. Aí, tomei gosto e não parei mais. Antes, fui marceneiro e trabalhei também como maquinista de trem, durante 15 anos.
Quando a arte passou a ocupar todo o meu tempo e atenção (além dos sonhos), larguei a ferrovia e fui ser artista em tempo integral. Há uns anos atrás, atuei também como diretor de uma ONG, que cuida de crianças em estado de risco e abandono. Lá, implantei projetos de arte educação e profissionalização de jovens.
Acho importante contar que cresci em um bairro simples de uma cidade do interior de Minas e que , a 100 metros da minha casa, tinha uma zona boêmia. Naqueles meados da década de 70, a zona fervia de gente e as mulheres de lá tentavam se vestir como as atrizes das novelas.
Havia ali um ambiente ‘romântico’, muito diferente das zonas de hoje. As mulheres quase não repetiam roupa, nos humildes mas abarrotados salões de dança da zona, aos finais de semana. Naquele ‘campo’ era obrigatório o jogo da sedução e da conquista. Muitas customizavam suas roupas, bordando desenhos lindos, junto com nomes de novelas da época (“Cavalo de Aço”; “Pavão Misterioso” etc).
Minha tia era a costureira preferida delas e possuía um salão onde 4 costureiras trabalhavam ativamente para aquelas freguesas ávidas por novidades. O fato é que eu adorava ficar por ali, agachado no chão, fazendo desenhos com linhas e retalhos (eu tinha 7 anos).
Me fascinavam os tecidos fartos e coloridos, o movimento das mulheres saindo do provador, com seus perfumes fortes e suas gargalhadas escandalosas. Com o tempo, passei a transitar pela ‘rua da zona”. Fazia-lhes pequenos favores, como ir comprar pão, leite, levar recados etc – e ganhava alguns trocados por isso.
Essas incursões me levaram a conhecer seus quartos – onde aconteciam os encontros amorosos. Me fascinei com aquilo: a cama de colcha rendada com uma almofada de cetim vermelho em forma de coração; a penteadeira cheia de vidros de perfumes baratos; o jarro com flores de plástico; o pôster do Roberto Carlos ao lado de um São Jorge na parede… e aquele cheiro inconfundível no ar.
Ouvia muitas histórias sobre elas – da vida que levavam e da vida que ficou pra trás: encantos e desencantos, amores possíveis e sonhos impossíveis, idas e vindas. Vida passageira, mas com destino incerto.
Meu trabalho transita no mesmo universo desses artistas, pois meu olhar é sempre atraído por questões prosaicas do dia-a-dia e minha compulsão criativa interpreta e recria esse objeto, muitas vezes dentro de um realismo-fantástico.
Venho, ao longo desses anos, desenvolvendo o que já pode ser destacado por sua especificidade: apesar de ser fortemente influenciado pela cultura popular e pelos processos artesanais, é completamente integrado com as questões artísticas da contemporaneidade.
De fato, me acostumei a esmiuçar o ambiente doméstico e locais públicos em busca de situações cotidianas, banais e costumeiras, mas que revelam muito do que somos.
O FIOTIM, por sua vez, agrega toda a pesquisa que venho desenvolvendo nesses 20 anos de carreira. O engraçado é que esta obra, que quando montada ocupa uma área de mais de 100m² e abriga uma série de ações, nasceu de um telefonema: Tudo começou no dia em que eu liguei para o meu primo João, que mora em Brumadinho.
Depois de uma longa conversa, eu perguntei a ele: “Joãozinho, como é que está o Inhotim?”. Aí ele me respondeu, eufórico: “Primo, tá um formigueiro de gente, igual Aparecida do Norte!”. Finda a conversa, aquela fala dele ficou na minha cabeça. “Cara, isso dá um ‘trabalho!” pensei na hora. “Já sei! Eu vou ser o camelô de Inhotim!” – cheguei a gritar.
Lá no início, quando eu comecei a enxergar o que esse trabalho poderia vir a se tornar, eu pensei: “Vai me dar um trabalho danado. Mas eu só faço se eu puder me divertir também!”. Pra minha sorte, nunca me diverti tanto na minha vida de artista, quanto agora. Meu desejo é poder viver isso em toda a sua intensidade e leva-lo ao máximo de lugares e pessoas possíveis.
FTC: Além da descrição que se encontra no site, quem é Jorge K? O que há de subjetivo e escondido?
O Jorge K nasceu naturalmente de uma necessidade de tornar o projeto mais envolvente e compreendido em sua totalidade. Eu tinha receio de que essa obra fosse vista como algo apelativo e oportunista (sabe aquela coisa do artista ressentido, por não ser aceito no ‘clube’? Eu tenho horror a isso!). Isso aqui não é uma ação de revolta ou de protesto contra o Inhotim. O Fiotim, por ser uma aventura ‘camelódica’, precisava de um camelô à altura.
Então surgiu Jorge K , um ‘pavão’ que tem uma biografia de dar inveja a qualquer Indiana Jones. A figura dele é simbólica. Sua apresentação é extravagante. Sob a ótica dele, a arte contemporânea toma ares cotidianos, próximos, exagerados. Com ele, você não sabe onde começa nem onde termina a verdade, e acaba embarcando na fantasia.
Você já viu o “Homem da cobra” em ação nas ruas? Ele vai contando histórias, relatando façanhas, prometendo milagres… quando você vê, já passou ali quase uma hora, escutando aquela conversa mole e esperando a cobra sair da maleta dele.
Ele é uma das referências do Jorge K. No caso do Fiotim, a ‘cobra’ é o conjunto de obras de arte em miniatura, que está lá dentro do trailer-galeria. As pessoas chegam e a princípio acham aquilo estranho, mas logo em seguida fazem as suas leituras, conexões e interpretações incríveis.
FTC: É a poesia um dos alimentos de Jorge K?
Poesia sempre. E ele a devolve na forma de nossos traços mais marcantes, nossa brasilidade. Nossa ‘cafonice’ bela e ancestral. Jorge K define nosso conceito natural de beleza, alegria e intensidade. Pois o Brasil é um país ‘quente’ e o brasileiro não é nada clean, nunca foi. Somos produto de uma mistura histórica, que resultou em uma ‘sem-vergonhice’ criativa e espetacular.
FTC: Qual o limite que separa você do personagem?
A vida real. No fundo eu queria ser ele. Imagina… ele é sedutor, poderoso, safo. Quando eu entro naquela pele, não tem pra ninguém. Acho que ele sempre esteve aqui dentro. Já tomei algumas atitudes bem a cara dele… e me lasquei por isso. Afinal, eu não sou ele.
FTC: Qual a importância das cores no seu trabalho?
As cores, assim como os elementos cenográficos, são chamativos e têm uma importância vital. A coisa é deliberadamente popular, entende? As obras de arte-miniaturas que estão no trailer-galeria foram feitas de forma tosca – porém buscando um certo ‘luxo’. O visitante é recebido com direito a jardim com flores de plástico e paisagem na entrada.
Os elementos acabam sendo muito naturais para as pessoas. Alguma coisa ali vai lembrar alguém de alguma coisa da própria vida – há sempre uma ligação afetiva. A ideia do Fiotim é a aproximação, fazer quem visita fazer parte do que vê. A estrutura toda carrega a energia e a irreverência da arte itinerante, mesclando a familiaridade dos parques com a fascinação dos circos.
A instalação é realizada em lugares abertos e recebe os visitantes com um repertório muito apropriado – de Sidney Magal a Michael Jackson – aliás, duas das minhas três inspirações estéticas para criar o Jorge K. A terceira, foi o Chacrinha, claro!
FTC: Qual o maior encanto que existe em Everland?
Quando anexei ao museu itinerante um “parquinho” e o chamei de “Everland”, eu quis aumentar ainda mais o grau de aproximação e de divertimento, neste contato das pessoas com a arte. Elas chegam e se relacionam alegremente com as esculturas interativas.
Alguns são bem originais, outros são inspirados em brinquedos já existentes: tem a “Máquina de Abrir Sorrisos”, o “Realizejo”, o “Renascedouro”, a “Máquina de Fazer Arte”, a “Curatriz – a Contextualizadora Voraz” e agora eu estou fazendo o “Self-Game – o Seu Maior Adversário é Você”.
Planejo no futuro fazer um jogo de tabuleiro e que possa ser adquirido pelas pessoas. Vai se chamar “O Jogo da Vida” e será para artistas que procuram o sucesso.
“É fato que um número significativo de pessoas nunca entrou em um museu. Sequer já viram um de perto. E de repente chega o Fiotim na cidade e cria a oportunidade para as pessoas se conectarem com a arte. E o que é melhor: de uma forma festiva.
Essa é uma das principais características conceituais do projeto como um todo: desacostumar as pessoas a ter um contato frio e ‘sisudo’ com a arte em exposições. Seja em praça pública ou em espaços institucionais, um dos atributos da arte deve ser possibilitar o prazer e a alegria.”
FTC: O que é arte para você e o que poderia dizer sobre a sua própria arte?
Difícil responder sem cair no lugar comum, mas vamos lá: Minha arte é a minha felicidade possível.
FTC: Qual tem sido seu maior aprendizado desde que começou o FIOTIM?
Tenho tentado crescer – como artista e como ser humano – para dar conta desta obra, que desde o princípio se mostrou grande em suas possibilidades. Depois que empreendi essa caravana pelo interior do nordeste, eu realmente me dei conta de sua capacidade de acolhimento e de encantamento das pessoas. Foi muito forte. Levamos arte contemporânea para elas, utilizando uma linguagem popular. Sem diminuir a arte, mas elevando as pessoas.
Realizamos oficinas de arte, encontros frutíferos. A maioria das pessoas teve um contato com um museu de arte pela primeira vez. E é uma bobagem dizer que elas não gostam ou não entendem. Hoje, pouquíssimas pessoas podem ir até o Inhotim, ao MAM ou ao MASP. E muitas delas, quando o fazem, essa relação se dá de uma forma subalterna. Os museus precisam se aproximar das pessoas, falar a língua delas, sobretudo nos lugares mais remotos. O Fiotim é pioneiro, pode e deve ser copiado, pelo bem da arte e do público.
FTC: Um filme, uma música e um livro.
“Bye Bye, Brasil”, de Cacá Diegues; “Estampas Eucalol”, de Xangai e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques.
FTC: Uma frase da sua vida.
“A vida é feita de ilusão.” (Ouvia isso demais na minha infância. Tenho motivos de sobra para acreditar nisso);
FTC: Algo que considera imprescindível para a entrevista e que ainda não foi dito?
Como artista e pai, acho essencial que a arte esteja presente no cotidiano da juventude e das crianças, desde cedo. A disciplina Educação Artística na escola, por exemplo, deveria ser levada mais a sério. A maioria dos professores não está capacitado para tratar corretamente da matéria. Ainda mostram a arte como uma ‘extravagância’ e o artista como um ‘iluminado’.
Por isso também vejo como muito rasa essa discussão em torno de se ter ou não Artes no ensino médio: Ora, o sujeito passa a vida toda aprendendo que a arte serviu e serve somente para registrar a história, entreter as pessoas e enriquecer uns poucos privilegiados. Quando chega no ensino médio e ele tem que se formar pra encarar a vida adulta, arrumar um emprego e constituir família, como é que você quer que ele considere a arte importante? O problema está lá na base.
Há que se mostrar e aplicar, desde cedo – repito – a arte como um universo possível, um elemento formador da personalidade e do caráter. Aquilo que amplia as perspectivas, na medida em que potencializa a criatividade e nos torna cidadãos mais capazes, críticos, autônomos e desenvolvidos.
Acompanhe o incrível trabalho de Jorge Fonseca com o FIOTIM também no Facebook e Instagram. Veja aqui, onde a caravana vai passar.