Ilustrações, pinturas, graffiti. A artista visual Michelle Cunha nasceu em Belém e cresceu numa cidade chamada Marituba, periferia as margens da BR-316 Belém-Brasília. O pai era policial e abandonou a família quando ela tinha 7 anos. A mãe, técnica de enfermagem, se virou sozinha e a ensinou a desde menina “fazer coisas” pra vender e sobreviver.
Na primeira faculdade, pedagogia, curso que iniciou com 17 anos, Michelle vendia cartões feitos de colagem e com poesias. “Eu tinha visto uma artista que vendia seus trabalhos assim, achei que podia fazer também e foi assim que eu conseguia ir pra aula. Acabei abandonando esse curso quando percebi que eu gostava era mesmo de arte. Foi quando comecei a fazer os cursos da Fundação Cultural Curro Velho, um espaço que na época havia sido inaugurado e era totalmente gratuito e voltado para o ensino de arte através de oficinas”.
Nesse período ela teve oportunidade de fazer aulas de fotografia, máscaras, teatro de bonecos, desenho, pintura, papel reciclado… “Eu queria experimentar tudo, era um outro mundo que eu nunca tinha tido acesso. De aluna, em pouco tempo passei a ser chamada para dar aulas na mesma Fundação. Depois de um tempo vivendo isso, fiz novo vestibular e retornei para universidade para fazer licenciatura em artes plásticas, mas passei do tempo de me formar, ficava dividida entre o trabalho, fui jubilada e perdi a vaga”.
Quando Michelle se mudou para Brasília, ela decidiu voltar a estudar: trabalhava de dia numa editora e estudava a noite, desta vez numa faculdade particular. Foi onde finalmente se graduou. Foi também em Brasília que descobriu o graffiti como linguagem e que assumiu a ilustração como um caminho para que seu trabalho tivesse mais condições de a sustentar.
O graffiti era a maneira de se expor pelas ruas, lugar visível. A ilustração, ela aplicava em canecas, camisetas, bolsas, ímãs e saia vendendo, deixava em lojas. “Foi desse jeito que eu me ‘espalhei’ pela cidade e meu trabalho começou a ter um pouco mais de visibilidade e reconhecimento” – conta.
Entre seus temas mais recorrentes estão o universo feminino, a natureza (flores, pássaros, corujas, peixes) e muitas, muitas cores vibrantes. Dona de um talento nato, sensibilidade aguçada para a arte, Michelle Cunha conversou com a gente e contou um pouco mais sobre suas inspirações. Confira entrevista exclusiva com a artista paraense:
FTC: Há quanto tempo cria as ilustras/grafites e quais materiais utiliza?
Quando vim morar em Brasília em 2006, passei a criar estampas para camisetas e canecas como uma forma de distribuir e comercializar meus desenhos, também como forma de me manter financeiramente em uma cidade que eu pouco conhecia. Foi a partir daí que eu comecei a entender a ilustração como um trabalho profissional.
Já o graffiti eu já vinha namorando fazia um tempo, porém não fazia ideia de como usar uma lata de spray. A rua sempre me atraiu, então eu comecei a intervir usando os recursos que eu dominava. Eu desenhava em folhas de papeis grandes com nanquim e colava pela cidade.
A rua me colocou em contato com outras artistas, pixadores, grafiteiros, muralistas… Comecei a entender o “role” do graffiti vivenciando a rua, participando de mutirões que reuniam grafiteiros e outros artistas, trocando ideias, assim fui aprendendo, pegando dicas aqui e acolá. Isso começou em 2012 e desde então não parei mais.
FTC: Qual a influência das cores nos seus trabalhos?
Eu sou muito exagerada nisso! Meu trabalho tem sempre muitas cores e elas são vibrantes. Sempre acho que eu exagero, mas não consigo ser diferente. Penso que trago uma influência da minha região que é o Norte, que é quente, que é também caótico, que é caloroso e alegre, festivo, apesar de todas as mazelas políticas que vivemos por lá desde o principio da colonização.
Acho que tem muito das cores do norte no meu trabalho, muito da visualidade amazônica, do colorido dos barcos, do artesanato de miriti, dos dias ensolarados… não sei bem explicar essa influência, mas quem conhece Belém, talvez entenda.
Percebo que minha paleta também muda quando estou em Brasília ou em São Paulo, percebo que absorvo um pouco os tons do lugar. No momento, as cores que se destacam no meu trabalho atual têm mais influências do cerrado, a terra avermelhada está mais forte desde que voltei a morar aqui.
FTC: Sempre soube o que quis fazer ou já teve suas dúvidas?
As dúvidas são parte do processo, muitas vezes ainda me pergunto se faz sentido ter dedicado uma vida a desenhar e pintar, se eu deveria ter me dedicado a outra profissão, que me desse mais estabilidade ou coisas do tipo, mas esses pensamentos não duram muito tempo, eu sou muito feliz com o que faço, ainda que financeiramente seja complicado!
FTC: Está tocando algum projeto específico atualmente?
Sim, continuo com o projeto de Oficinas de Graffiti para Mulheres que iniciou em 2015, que é um compromisso que assumi comigo mesma de compartilhar e ajudar no empoderamento de outras minas de forma voluntária.
Normalmente eu proponho a oficina para um espaço cultural que possa acolher a ideia cedendo um lugar pra o trabalho e cobro apenas pelo material que é usado de forma coletiva. Já aconteceu situações onde fui remunerada, mas a ideia é que o dinheiro não seja um impedimento para algumas mulheres em fazer a oficina.
A primeira vez que fiz esse trabalho, abri minha casa, usei o meu material e inscrevi 12 meninas de vários bairros de Belém. Dai surgiu a Freedas Crew, um coletivo de mulheres grafiteiras que atua hoje em Belém. Até agora o projeto já alcançou mais de 120 meninas em Belém e em Brasília. Acho que isso demonstra o poder e a força deste gesto, de uma ação de iniciativa individual que acontece com quase nada de recurso.
Além disso, tenho previsto uma exposição em Brasília para o próximo semestre, estou participando de uma coletiva no Museu da República junto com outros grafiteiros (a primeira exposição que une graffiti e obras de grande importância na história da arte brasileira num espaço institucional).
FTC: O que é arte para você e como você definiria a sua arte?
Afora todos os conceitos construídos historicamente por intelectuais e artistas e que estão sempre mudando de acordo com o contexto, posso dizer que pra mim é o modo de compreender e me relacionar com o mundo ao redor. Eu não sei outra forma de pensar, entender, comunicar que não seja esta. É a forma de exercer minha espiritualidade, de experimentar a vida de um modo diferente do que nos ensinam e tentam nos condicionar.
A minha arte é uma busca interna, uma necessidade individual de tentar entender o que me cerca, uma vontade de mudar as coisas e manifestar o que sou, “dizer” as pessoas de um modo muito específico o que sinto. Minha arte é o que faço pra não ser esmagada por esse sistema, minha rebeldia, minha resistência e por fim, meu pão de cada dia.
FTC: Com o que você se inspira?
“Eu ando pelo mundo, prestando atenção em cores…” – Tudo ao redor me toca, me afeta… as pessoas nas ruas, o mato, a paisagem, o caos da cidade, os moradores de rua e também os artistas de rua, as musicas que ouço, as conversas com amigos, o quintal da minha mãe, as crianças.
A cidade me inspira: as paredes saturadas de tinta, propaganda, poeira, pixo…eu sempre caminho e viajo sozinha, gosto de vagar e só observar, sentir o fluxo, só pelo prazer de deslizar pela cidade sem fazer parte da mesma engrenagem.
Me inspira também ver o que outras pessoas estão produzindo, pesquisar a obra de artistas atuais e também antigos.
FTC: O que te dá mais prazer no seu trabalho? E o que dá menos?
O prazer de ser eu mesma e fazer ago que acredito, contrariando a lógica racional e capitalista, onde você desde criança tem que ser “alguém na vida”. O prazer de não servir a ninguém, não ter patrão e atravessadores para meu trabalho acontecer. O que me dá menos prazer é ter que negociar meu trabalho, essa é a parte que eu não sei fazer e não gosto.
O desprazer em ter que transformar o meu trabalho em mercadoria, em ter que lutar por um espaço no mercado pra conseguir me manter, o desprazer de perceber que mesmo entre artistas existe o jogo da concorrência, uma disputa muitas vezes desumana e injusta.
FTC: Quando viu que dava pra viver disso, ou não dá? Quais as dificuldades nessa carreira?
Como comentei no começo, esse foi o caminho que escolhi e até agora deu pra viver disso, mesmo na corda bamba (a gente aprende a balançar e a cair). A maior dificuldade é a desvalorização do trabalho dos artistas.
A pior parte é fazer com que as pessoas entendam que não se trata de um passa-tempo, um hobby, mas de uma vida inteira de dedicação e também de renúncia, uma forma de trabalho que merece o mesmo valor e respeito que outros!
“As coisas nunca caíram do céu, nunca tive mesada, bolsa de estudo, coisa do tipo, minha família nunca foi contra, mas também não tinha como me apoiar. Fiz esse percurso acreditando que um dia as coisas seriam mais fáceis, que não seria preciso ralar tanto… esse dia ainda não chegou, mas através da minha arte as coisas fluem melhor que antes”.
Criar, resistir e se libertar: o graffiti para Michelle Cunha é além de um gesto artístico, é um exercício político.
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