Tattoo Friday

As Tattooistas e o empoderamento feminino na tatuagem. Conheça as mulheres incríveis que dão vida à este coletivo brasileiro

Um final de tarde tatuado por ideias suntuosas, opiniões marcantes, personalidades fortíssimas e falas inspiradoras. Esse foi o encontro que o FTC teve com as Tattooistas, um coletivo de mulheres tatuadoras brasileiras com talentos fascinantes.

As Tattooistas é um coletivo feminino representado por profissionais com muita profundidade: o grupo de tatuadoras, apaixonadas pela arte em todas as suas formas, tem o objetivo de dividir experiências e somar afetos. Não há partido político, religião ou filosofia que seja capaz de definir essas mulheres em constante construção. A cada dia, tornam-se a melhor versão de si mesmas.

Mulheres que se aproximaram pelo puro desejo de troca, aprendizado e paixão pela tatuagem. Os traços que cada uma cria, na pele dos que se permitem levar marcas para o resto de suas trajetórias, são inspirados por diversas histórias.

O grupo deseja ultrapassar as barreiras do preconceito, do senso comum e das ideias insossas e vazias de sentido. Com leveza e uma boa dose de irreverência, o empoderamento feminino estimula essas mentes brilhantes e cativa os diversos tipos de clientes com seus trabalhos autorais, cada uma dentro do seu estilo.

O encontro teve a participação de Jéssica Paixão, Sasha Pest, Mari Kuroyama, Lan Pravda e Dani Bianco (pelo Skype) no estúdio Inkdomus, em São Paulo.

Ao longo da entrevista você também vai conhecer as Tattooistas que não puderam estar presentes, como Isa Montenegro, Clari Benatti, Ana Abrahão, Bona Sunama, Criz Suconic, Kessy Borges, Luana Dorea, Luiza Oliveira, NelyOne, Pink Becker, Ingryd Guimarães e Tania Maia

Imersas em suas subjetividades, elas contaram suas histórias individuais, expondo perspectivas arrojadas e um senso crítico afiado sobre a arte na pele, diferentes opiniões e prós e contras de ser mulher nessa profissão. Confira:

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Lan Pravda

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FTC: Como vocês se conheceram, e como tudo aconteceu?

Jéssica: Nós já nos conhecíamos pelas redes sociais, e aí na Tattoo Week do ano passado nós acabamos nos encontrando, vimos que uma era amiga da outra, e fomos nos juntando. Quando já estávamos mais próximas, aconteceu de um dia estarmos no Instagram e acharmos um perfil que postava as nossas fotos divulgando nossos trabalhos como se fossem os trabalhos dele.

Conversei com a Gabi Droguett, que é de Salvador, que também já era uma amigona, e então nós falamos: “cara, a gente precisa de um contato, de um canal de comunicação entre a gente. Vamos criar um grupo de Whatsapp!”. Nos unimos e fizemos um grupo.

Mari: Nós mandamos uma mensagem no Instagram para várias mulheres, juntamos os telefones e, de repente, não paramos mais!

Jéssica: Nas 15 primeiras pessoas, montamos um grupo no Whatsapp para estreitar a comunicação. Surgimos daí, trocando ideias, até mesmo com relação a material, o que é que cada uma usa, tirando dúvidas, desabafando. Diversas vezes a gente fala da dificuldade que é de algumas meninas terem filhos, como elas fazem para conciliar a maternidade com a tattoo. Nós acabamos ficando muito próximas.

FTC: O início surgiu para discutir a questão das cópias dos seus trabalhos?

Mari: O início foi para montar um grupo de mulheres.

Jéssica: Um coletivo de troca, porque nós víamos que tínhamos em comum o fato de sermos mulheres, de termos trabalhos muito autorais, e que algumas estavam mais à margem, no sentido de estar fora desse contexto mais tradicional da tattoo, e então falamos: “Precisamos nos unir para nos fortalecer. Vamos montar um grupo para conversarmos e poder até fazer algo como isso: ‘Quero ir pra Bahia fazer uma temporada, ah, conheço a fulana’, sabe?!”

Sasha: É que é um mundo muito hostil, o da tattoo. A gente acha que é tudo muito legal e cool, mas é muito machista, fechado e cheio de preconceito, generalizando, claro. Foi uma tentativa de se fortalecer, porque normalmente o estúdio tradicional vai olhar nosso trabalho e vai dizer: “estão inventando moda, essas meninas aí.”

Jéssica: “Isso nem é tatuagem”… Quantas vezes já ouvimos isso!

Sasha: “Traço fino desse jeito ?!” – Eu já tive tatuador que veio falar para mim: “toma vergonha na sua cara e vai comprar uma maquininha”, e mal sabe ele que a maquininha dele vem do que eu faço. Existe meio que uma raiva imposta.

Mari: Tatuagem existe há mais de cinco mil anos, é uma coisa muito tribal, profunda, que tem muitos conceitos que vão além de simplesmente algo estético. E na verdade, nos conceitos tribais, são rituais sagrados, ritos de passagem fortíssimos. Por exemplo, as mulheres Maori que têm essa parte (vertical frontal do pescoço) tatuada, possuem uma posição de liderança dentro da tribo.

Existem tatuagens, como por exemplo, essa daqui (Mari indica uma tattoo no próprio braço) é um desenho da ilha de Samoa que foi feito no martelinho, e tem uma tradição, um significado, tudo isso tem contextos específicos.

Jéssica: Mas eu acho que nós vamos também muito por uma linha de tentar colocar significados e subjetividades.

Mari: Eu tatuei semana passada uma psicóloga que falou: “o que você faz é terapêutico, como uma ‘tattoo terapia'”. Acaba passando mensagens positivas para as pessoas, naquele momento. Hoje mesmo eu tatuei uma moça que estava chorando, seu cachorro morreu e ela esteve com ele por 17 anos, desde criança. Enfim, as histórias das pessoas estão marcadas naquela criação que é personalizada para a história dela. Então para mim isso é um rito de passagem contemporâneo.

Jéssica: E a tattoo pode servir para “n” coisas, desde para a pessoa conseguir passar por uma fase de luto ou para ela se fortalecer. Eu já tatuei um leão em uma moça, mais delicado, mas ela queria a força do leão. Ela não conseguia decidir nem o lugar da tattoo. Ela pedia ajuda para amigos o tempo todo e ela falava pra mim: “tá vendo porque é que eu preciso da força do leão? Eu quero essa força, eu quero ser mais assim, eu não consigo, isso é muito difícil pra mim, e eu acho que o leão tem essa força que eu sinto que preciso, então eu quero ele em mim”.

Mari: Ela vai olhar e sempre vai lembrar.

Jéssica: Da forma mais literal mesmo, no corpo, uma história.

Sasha: E é literal para você. Alguém vai olhar aquilo e vai falar: “Meu Deus, não faz o menor sentido!”

Jéssica: Acho que nós vamos tendo um olhar um pouco diferente sobre o processo da tatuagem, então tudo isso é importante, não é só o produto final. Nós temos muito isso em comum. Acabou ficando no grupo quem pensa um pouco parecido.

FTC: Após o grupo de mulheres criado no Whatsapp surgiu o propósito dessa história e do processo criativo? Qual é a ideia principal? Qual foi o desejo que deu surgimento ao nome e como tudo funciona?

Jéssica: Tudo aconteceu muito naturalmente, foi muito orgânico e não nascemos com nenhum objetivo específico. Nós não temos nenhuma postura grupal, como “somos um grupo feminista”, ou “somos um grupo vegano”, não.

Sasha: Nós queremos mostrar que o sol brilha para todo mundo, e que o que era tatuagem há um século, hoje já é outra coisa que está viva, existe mercado e ninguém precisa entrar no espaço de ninguém, não precisa ser uma disputa. É um espaço de troca de opiniões no respeito ao diferente.

Mari: Há um ponto importante: nós vivemos numa sociedade que diz que as mulheres são competitivas e, na verdade, nós nem nos conhecíamos e simplesmente nos aproximamos, e é isso o que a Sasha falou, tem espaço pra todo mundo! Às vezes, se tem cliente sobrando, passamos a diante, é um compartilhamento dessa força. Nesse sentido poderia até ser um grupo feminista, mas não foi o intuito. E também é um momento que estamos vivendo, algo social.

Lan: Existe uma certa carência nesse meio da tatuagem. Eu, pelo menos, quando comecei a tatuar vi que era muito fechado. Você procura ajuda, dicas, e as pessoas não querem te dar. Não sei se sentem isso como uma ameaça, ou receio. Você começa meio que sozinha, se vira, e eu até comentei que me sentia meio “abandonada” até encontrar um grupo, e eu nunca consegui trocar tudo isso com ninguém.

Jéssica: Somos um grupo muito permissivo, temos muitas opiniões, todo mundo expõe sendo que ninguém julga ninguém.

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FTC: Diante das diferenças, qual é o ponto em comum entre vocês?

(Todas): O do trabalho autoral.

Jéssica: É o que mantém e o que fez selecionar as pessoas que estão no grupo agora. O grupo começou mais heterogêneo, e agora com as quatro meninas novas, nós escolhemos trabalhos bem autorais e que possuem essa coisa da construção da tattoo, mais ampla, como processo de não tratar a tatuagem como produto.

Mari: Vamos além da estética.

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FTC: Nesse processo criativo, onde entra a arte?

Mari: No momento de criar. Por exemplo, eu tenho duas pessoas para tatuar amanhã. Quando sair daqui, eu vou me sentar, vou ler o que elas escreveram e anotar os pontos principais. Eu, pessoalmente, faço alguma prece ou oração para que eu consiga me conectar com aquela pessoa, e trazer para o papel aquilo que ela sonhou para tomá-la pela vida inteira. É esse momento da criação.

Dani: É um trabalho tão intuitivo que não tem como ter uma fórmula. Você aprende a técnica, e depois aplica a sua intuição ali, o seu jeitinho de fazer. O nosso estilo acaba sendo colocado na técnica.

Jéssica: Muitas vezes os clientes mandam referências, imagens, e aí vamos tentar absorver tudo aquilo e transformar numa tattoo autoral, produzir algo para ele. Isso é o máximo da arte, você absorver tudo e transformar aquilo numa coisa nova. É tentar pegar todas as referências que o cliente está falando e às vezes não está esperando, e colocar aquilo numa produção sua.

Lan: Acho que o lance da arte entra na interpretação subjetiva, mas com uma estética própria. Não basta apenas ter um significado, tem que ser bonito e ter uma linguagem na qual o cliente se identificou quando te procurou.

Sasha: O negócio da referência é engraçado porque o que é a referência? Não é só um desenho, uma tattoo, pode ser um tecido ou um poema, um vídeo ou um filme, qualquer coisa que remeta à pessoa a tatuagem, e eu peço imagens em geral para visualizar com os seus olhos o que te agrada. Você está se colocando no lugar de uma pessoa que talvez você nunca tenha encontrado na vida.

Mari: E tem muito o uso da empatia para pegar a ideia da pessoa, que é subjetiva. Muitas vezes eu pego pessoas que sabem exatamente o que elas querem, às vezes elas até desenham um esboço porque não sabem desenhar e querem do meu jeito, e têm as que não sabem nada e mandam coisas subjetivas para eu captar aquilo.

FTC: Qual é o maior aprendizado que vocês vêm tendo desde quando começaram o coletivo?

Mari: Eu tenho aprendido a me sentir amparada com o grupo. Eu trabalho sozinha há muitos anos, são dez anos de tatuagem sendo oito deles sozinha, então o grupo é um acolhimento.

Jéssica: Tem gente que provavelmente está passando pelo mesmo, então vamos compartilhar, sabe?! Aprender num grupo tão heterogêneo vai nos mostrando que há várias outras formas de fazer, você não é a certinha do mundo que está fazendo sozinha, há vários outros jeitos certos de fazer. Por sermos tatuadoras e mulheres, estarmos num meio super tradicional e fazermos um trabalho muito distinto, nós nos sentíamos muito sozinhas mesmo. Essa é uma coisa que a gente tem muito em comum. A gente se encontrou e viu que há muitas possibilidades, tem que ter muito respeito para estar num grupo assim, tão heterogêneo.

Dani: Eu acho que essa coisa de nos unirmos e não haver concorrência possibilita a cada uma ter um estilo, porque acho que o problema dos tatuadores antigos, é que, por exemplo, cada um segue o mesmo estilo, igual a Jéssica falou, são tradicionais. Então cada um que aparece acaba sendo uma concorrência, o que com a gente não acontece. Cada uma tem o seu trabalho. Ninguém vai roubar o lugar de ninguém.

Sasha: Aceitar as pessoas como elas são. A troca com as meninas é muito boa, e vejo que tenho que aprender muito com as minhas amigas Tattooistas porque cada um é cada um. E também conciliar o tempo do cliente com o meu. A verdade é que o estilo pode ser parecido, mas nunca será igual. Se você respeitar que existem clientes para você e para aquela outra pessoa também, há outra forma de olhar, em vez de ver como um concorrente.

FTC: Com o que vocês se inspiram além da tatuagem?

Mari: Natureza, astrologia, cosmologia.

Jéssica: Tem inclusive uma tatuadora no grupo que é especialista em caligrafias, em escrita, a Gabi. Às vezes ela coloca um detalhe ou outro, mas o foco dela é esse e o estudo dela é esse. Ela fez todos os cursos de caligrafia possíveis, tem todos os livros, e é especialista nisso, então as influências dela são outras.

Sasha: É legal porque eu, por exemplo, não tatuo frases nem palavras. Se alguém me pede isso eu falo “você está aberto para a gente ver isso de outra forma?”.

Jéssica: Algumas das tatuadoras fazem basicamente tatuagens mais tradicionais, como a Aline e a Ingryd, e a gente consegue trocar isso. Elas mostram trabalhos mais tradicionais que muitas vezes por nós sermos de outro estilo, às vezes a gente nem conhece, então vamos ampliando um leque que poderia ficar muito restrito.

FTC: Vocês têm algum projeto ou ideia específica para atuar mais adiante?

Mari: Participar de eventos. Também essa coisa da rede, como por exemplo, se eu tiver que ir pra Brasília tem o estúdio da Ana, essa rede de acolhimento.

Sasha: Nos encontrarmos, quando der, fazermos o máximo de eventos juntas. Nesse último Flash Day vieram umas meninas do interior de São Paulo, veio a Kessy de Vitória, a Ana de Brasília, e já foi uma grande troca. Rolou uma movimentação maior depois no grupo no intuito de vida fora da tatuagem, social.

FTC: Como é a influência das cores nas tatuagens e na vida de cada uma?

Mari: O preto e branco para mim são clássicos, como um “pretinho básico”. Com as outras cores, para mim, a inspiração maior vem da natureza, tudo o que o homem criou até hoje é o que ele viu de fora, e o que tinha de fora antes desse concreto é natureza.

Sasha: O preto e branco para mim vêm do contraste com a pele, por exemplo, mas não tem como ser algo generalizado, pelos vários tipos de cores de pele.

Mari: Eu uso colorido na pele negra também, sou meio que ativista nisso, porque todo mundo fala “ah pele negra dão dá pra fazer colorido”. Não. Dá pra fazer. Não vai ficar igual da pele branca, mas não significa que o bonito seja esse.

Sasha: Tanto que na Tailândia a galera tatua muitas vezes com óleo, nem precisa ficar a cor, é o ato de se tatuar porque tem um lado religioso, tem um fundo terapêutico, ritualístico, por isso a ideia da tatuagem não como produto.

FTC: Como foi a experiência do Flash Day?

Mari: Muitas de nós têm a agenda fechada enquanto muitas pessoas estão querendo. Tem uma série que eu chamo de “Mulheres em Flor”, que é relacionadas à natureza e nem todo mundo quer tatuar isso, é uma coisa que eu faço para mim, e às vezes eu posto no Instagram: “quem quer tatuar isso?”, mas é bem raro.

Sasha: Liberdade de criação.

Dani: O que eu acho legal no Flash é que às vezes aquela coisa de o cliente não saber como passar pra gente o que ele quer, a hora do flash é a hora de a gente mostrar o que a gente sabe fazer pra fugir daquilo que todo mundo pensa.

Jéssica: É um momento muitas vezes de o cliente consumir arte por arte. Ele está passando por ali, achou bonito e quer aquilo. E ele vai usar um pedacinho do corpo pra colocar uma arte nossa que às vezes nem tem tanto significado para ele, mas achou bonito.

FTC: Uma palavra que represente As Tattooistas para cada uma.

Mari: Sintonia.

Sasha: Empoderamento.

Jéssica: Troca.

Lan: Confraternização.

Dani: União.

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FTC: Desejam que algo a mais seja dito?

Sasha: Por mais que a gente seja um grupo fechado e potencialmente aberto, não há a ideia de separação, muito pelo contrário, a ideia é de união.

Jéssica: E por mais que a gente tenha falado tudo isso aqui, provavelmente as outras 15 meninas pensam algo diferente e que tudo bem.

Mari: Estamos em mutação.

Lan: Deixar claro que estamos em construção e que existe sim abertura. Não estamos concluídas, e talvez nunca estejamos.

Jéssica: Nós recebemos muitas mensagens pelo Instagram perguntando como faz para divulgar o trabalho no perfil das Tattooistas, mas tudo é muito além disso. Não estamos aqui para nos divulgarmos individualmente, nem para ganharmos seguidores, isso é consequência, somos um grupo muito além disso. Somos um grupo despretensioso de troca, um grupo de acolhimento. Muitos dos eventos que fazemos são inclusive para nos encontrarmos, e a divulgação também acaba sendo conseqüência.

 

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Tania Maia

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Fotos © Marina Gallegani. 

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